top of page
  • Foto do escritorRomeu Waier

Críticas do Conde | O Homem que odiava o Natal



Crítica do Conde | Scrooge



No Rio Grande do Sul temos em torno de 497 municípios, e menos de 100 deles contém um grupo de teatro. Porque não existem mais grupos de teatro? E porque os que existem se mantêm por tantos anos? Qual mistério do destino faz com que alguns grupos surjam e outros nem vejam a luz do sol? Seria a falta de investimento? Falta de união? Falta de estudo? Falta o'que? 


 Vivemos em uma era da tecnologia, das redes de streams, dos programas de televisão, das grandes celebridades, da fama pela fama. Mas será que esse vislumbre é teatro? Será que os nossos objetivos reais enquanto ator criativo é ter fama por fama? 


Uma vez li em um livro muito interessante, que temos duas vontades dentro de nosso ser, uma é completamente ilusória, ela provém do estado, das leis, dos comerciais e do inconsciente coletivo. É aquilo que nos convencem o'que devemos ser. Como vestir-se, andar, comer, gesticular e no que trabalhar. Essa vontade também poderia ser nomeada de Apoliminia, que provém do Deus Apolo, aquele que mantém tudo em seu devido lugar pelas leis do estado.  Por outro lado temos a segunda vontade, que aqui vou nomear de Verdadeira Vontade, que é aquilo que surge de dentro para fora, e não mais de fora para dentro. É onde eu descubro quem realmente eu sou e para onde quero ir sem interferências externas. Essa vontade poderia ser nomeada de Dionisíaca, que provém do Deus Dionísio, o mesmo que rege o Teatro.


 Acredito que quando alguns atores juntam-se sabendo que suas vontades estão equivocadas desde o nascimento e que existe algo, que eles ainda não sabem, que é real, e querem descobrir ao decorrer da jornada, talvez daí, surja um grupo de teatro. Um grupo está muito mais ligado à descoberta do eu pela jornada do coletivo, do que certezas absolutas e objetivos individuais ligados a um vislumbre.  Mas esse processo é doloroso, todo o processo teatral é doloroso, porque ao identificarmos isso precisamos abrir mão desses falsos sonhos, desse falso eu que nos é tão confortável. Talvez por isso os grupos de teatro estão cada vez mais escassos, porque cada vez estamos mais ambiciosos pela Fama, e assim desconstruir um ego ( que no teatro exige-se) torna-se muito mais difícil. 


Uma metáfora interessante é:


 “ O papel do ator é ter seu corpo escalpelado e ter sua pele trocada diversas vezes por outros corpos”. E esse ofício é extremamente doloroso. Diria Eliani Alessio que o teatro é como um abismo, não tem meio termo, você precisa se jogar!  


“As boas ações se servem para o jardim de infância, o teatro é o lugar da Gangrena”- Nelson Rodrigues 


Enquanto aprendiz das artes cênicas, especificamente o teatro, sempre tentei me colocar em um lugar de neófito, aquele que está iniciando e aprendendo o ofício. E quando me coloco neste espaço tento ensinar aqueles que confiam em mim, a devoção do teatro. Mas as vezes é tão difícil, porque colocamos nossas falsas vontades acima do objetivo maior. Não sou eu que organizo essa grande teia universal, não fui eu que dei play nesse filme, e não sou eu que dei início a carreira dos meus alunos. Mas cada um de vocês. 


Claro, que para se dizer um artista  devemos lutar diariamente para que nosso ofício seja nosso sustento e acima disso construímos uma plateia crítica, um fomento cultural, uma educação da arte, um legado. Para que assim nossas cidades sejam capazes de abraçar os novos artistas que surgem, e que não precise mais ir embora para fazer teatro. 


Existe uma grande diferença entre talento e vocação, um artista talentoso pode fazer muito sucesso, mas se ele não tiver vocação, assim que surgir outro melhor que ele, será esquecido. Artistas que têm vocação lutam diariamente, e sabem, que seu talento deve estar a serviço da arte, e não o artista a serviço do seu talento. Queridos alunos, colegas, e amigos entendam de uma vez por todas. Não há nada de bom no vislumbre de uma ambição que não tem propósito. 


O trajeto construído em grupo é oque constrói a nossa personalidade cênica, algo que todo ator busca, da mesma forma que formamos nossa personalidade cotidiana ao crescermos. Já o ator constrói essa personalidade cênica da mesma forma que se forja uma espada, a ferro e fogo. É preciso calma… paciência… E constância.


Tudo que escrevo aqui não são meras vozes da minha cabeça, mas anos de estudos, conversas com mestres, mentores, professores e prática! Muita prática! E pensando nisso…


Dia 22\12\2023 estrou “ O Homem que odiava o Natal” uma montagem de Romeu Waier adaptada do conto “Um conto de Natal” de Charles Dickens. Essa é a primeira montagem da equipe de Waier que conta com interpretações e um universo do teatro mais intenso e maduro. Algo que existe busca, técnica e aprofundamento. Acredito que a escolha de estrear no sótão da livraria Inglinks fez da montagem algo muito especial, que ao mesmo tempo que desafia seus alunos, também engrandece o trabalho, uma vez que é adaptado para o ambiente que o torna mais íntimo ao público, diferente de um palco italiano que nos causa uma sensação de distanciamento, essa montagem me trouxe uma sensação de claustrofobia. Algo que faz muito sentido quando falamos da assinatura artística de Waier. 


 Venho acompanhando o crescimento desse ator e agora aprendiz de direção, Romeu procura um teatro provocativo, intenso, visceral. Até mesmo quando foge desse universo, acaba por esbarrar nele novamente. Talvez eis aí tua personalidade cênica, e não teria como seus trabalhos como diretor fugirem disso. E todo esse aglomerado de situações, fazem com que essa equipe busque se aprimorar cada vez mais nesse teatro que chega muito perto da Tragédia, da Farsa e do teatro pós guerra, o expressionismo. Diria ao Romeu para trabalhar mais com seus atores, questões de energia e Elan, algo que senti falta na apresentação. Mas no todo, a equipe inteira estava muito conectada e conseguiram convencer a plateia sobre a decadência de Scrooge. 


Charles Dickens ao escrever um conto de Natal, queria falar algo muito além do Natal, mas da humanidade. Seus diversos contos flertam com o existencialismo e também com críticas sociais ácidas, Romeu traz um tom mais sombrio à montagem, humanizando aspectos que a indústria ao passar dos anos glamourizam sobre o Natal. Aqui não temos duendes, papai noel ou árvores coloridas, mas abre espaço para espíritos sinistros, ecos particulares e velas sombrias.

Fernanda Caroline vem crescendo nas suas construções, tem um olhar perspicaz aos detalhes que ninguém mais consegue ver, consegue segurar a atenção do público com sua personagem. De longe umas das melhores escolhas de caracterização. Seu figurino assim como seu cabelo combinam muito com a proposta da montagem. Palmas para Rick Artemi e Nara Medeiros que ajudaram a compor a caracterização dessa personagem. Acredito que possa trabalhar melhor a densidade dos movimentos da personagem, assim como o acabamento de cada ação. Senti um pouco falta de alguma transformação facial da personagem da esposa versus do espírito. Palmas para a cena da valsa, dominou a cena e ficou perfeito! 

Matheus Garcia ganhou o certificado de ator revelação do projeto AABB Encena, e agora é convidado a fazer parte do elenco de uma produção independente, da produtora RW Produções. Uma responsabilidade em tanto levando em consideração a exigência que Waier tem em suas construções. Matheus consegue transmitir um subtexto do personagem que apenas grandes atores tem, consegue passar uma interpretação muito convincente oque conquista a plateia muito rápido, talvez por isso Waier optou por iniciar a peça com esse ator. Além disso, conseguiu construir um tom vocal que funcionou muito para com o personagem. Nos bastidores conseguia ver sua inquietude assim como a tentativa de memorizar sua partitura corporal com a muleta, essa é uma lição que todo ator que está iniciando precisa aprender, fazer o laboratório de seu personagem. Diria apenas para criar mais nuances na personagem, isso vai te trazer mais organicidade. 

Naty Mendes estreou sua primeira peça vindo diretamente da escola Anchieta, é por isso que fazemos teatro, para isso visitamos escolas, empresas, instituições. Para descobrir novos talentos! Naty é uma aprendiz que carrega em seu semblante um olhar profundo e uma vontade silenciosa e constante de aprender e estar. Fico muito feliz vendo jovens artistas se descobrindo, testando seus limites, se entregando ao ofício teatral. Vestir a camiseta, arregaçar as mangas e trabalhar, é oque todo grupo de teatro precisa! Naty se mostrou uma excelente contra-regra ao conseguir ajudar a administrar luz, som e adereços, tudo para ajudar seus colegas. Além disso, em sua cena como Irmã de Scrooge, conseguiu transmitir bem a ideia de inocência. Diria apenas para trabalhar mais sua intensidade em cena e projeção vocal, mas acredito que esse ano Waier irá perpassar todos esses conceitos com vocês. Parabéns pela tua estreia! 

Rick Artemii fez mais de um personagem, esteve entre as coxias, ajudou a comprar adereços, confeccionou roupas, é o braço direito de Romeu Waier. Merece todo aplauso pela dedicação, empenho e entrega. Não só por essa peça, mas pelos anos que antecedem tudo isso. Sem tua contribuição a peça não teria saído do papel e não existiria a possibilidade de um grupo de teatro. É muito importante sempre reconhecermos que teatro vai além de estar em cena, é um trabalho artesanal, minucioso e principalmente de muita paciência. Acredito que a tarefa mais difícil nesse lugar que Rick ocupa, é conseguir separar amizade de trabalho, já que Romeu e Henrique são amigos há 12 anos. Diria apenas para que seus próprios fantasmas não atrapalhem suas construções. Parabéns pelo personagem do segundo espírito, demonstrou força, projeção vocal e energia. Acredito que a trupe poderia repensar sobre seu figurino, para que tenha mais camadas, e seja funcional em cena. Uma dica para finalizar é seduzir seu público. Falando nisso…

Bruno Tolentino demonstra não ter problemas em seduzir seu público, muito pelo contrário, sabe fazer isso de forma orgânica. Sua contribuição para o teatro panambiense tem sido de muito valor, demonstra ser um ótimo colega teatral, realizando várias tarefas e ainda dominando o público. Uma dica que posso dar para todos da Cia, é, dominem a história que vocês estão contando, o ator precisa buscar vários elementos para a construção de um personagem. Isso estende-se a assistir vários filmes, séries, ler livros, artigos, escrever, ensaiar, decorar. Tudo isso faz parte do trabalho do ator. Assim, quando seu diretor testá-los em cena, estarão preparados. Bruno transparece ter uma relação muito boa com toda a equipe, e parece ter muita ambição também, uma coisa que vi a sete anos atrás em Romeu Waier. Diria apenas para que o ator trabalhe mais as nuances vocais e físicas do personagem, uma vez que assim que o público entende um código, ele já precisa de algo novo para apreciar. Esse momento é muito especial, aproveite sem pressa, se delicie com a possibilidade de criação, e ainda mais, lembre-se que o teatro é muito generoso, para aqueles que são generosos com ele. Parabéns Bruno! 

Nara Medeiros ocupa um papel muito importante na história, como uma narradora onipresente, uma presença invisível. Mas também dá vida ao terceiro espírito. Nara carrega em sua trajetória anos de experiência e isto é visível em cena. Sua facilidade em improvisar, criar conexões textuais que funcionem e também sua capacidade de perceber o todo merecem aplausos. Seu magnetismo é de uma atriz pronta para grandes montagens. Acredito que assim como no personagem de Henrique, a trupe deveria repensar a máscara usada pela personagem. Uma vez que a cor destoa do figurino. Não sei qual intenção Romeu optou por esse tom, uma vez que a roupa não carrega mais nenhum elemento dourado. Diria para a atriz se divertir mais entre as cenas, uma vez que sua presença ao provocar Scrooge é bem aceita por todo público, explore alguns filmes de suspense e horror psicológico, talvez isso te dê alguns recursos para brincar com a mente de Scrooge e do Público. Fiquei me perguntando o porque da Máscara dourada não ter sido tirada após Scrooge ressurgir dos mortos se o texto foi dito pela contadora da história, e não mais pela morte… Ficou um pouco confuso.Percebo que assim como Matheus Garcia, a Nara também tem um registro vocal muito interessante, diria para explorar mais as nuances de sua própria voz, quais outros registros ou desenhos consegue fazer? 

Romeu Waier demonstra domínio de cena, um deboche que se mistura com o ator e o personagem, e claro, a visceralidade que é sua marca registrada. Romeu consegue explorar bem os adereços de cena, usar sua roupa a favor do personagem e também explorar diferentes tipos de ângulos de interpretação. Em cena consegui vê-lo de pé, engatinhando, sentado, se contorcendo e quase flutuando. Fica como exemplo para os novos atores que estão surgindo em sua trupe, quais ângulos como personagem eu posso explorar? Às vezes nos acostumamos a ficar de pé como colunas gregas, e todas as outras possibilidades de ângulos físicos desaparecem. Diria para Romeu pensar em uma roupa de época para usar por baixo do grande macacão colorido que usa, assim ficará com mais acabamento em cena seu figurino, assim como uma meia. Diria inclusive para todos da trupe repensarem o'que usar em seus pés. Romeu elenca bem sua equipe, seus atores tem crescido, e não só em Panambi, tem feito pontes com grupos, diretores e colegas de fora. Parabéns pela entrega e comprometimento com o crescimento de seus atores.


Para finalizar essa crítica gostaria de salientar que enquanto público gostaria de ver mais uma vez o espetáculo, e talvez outra, e mais outra. Acredito que a Cia tem um potencial muito bom em mãos, agora só precisa polir, repensar, ensaiar e vender. É um tipo de apresentação que com um bom Produtor por trás, conseguirá uma base de fãs muito rápida. Aproveitem essas oportunidades, porque não é todo grupo que tem uma aceitação tão fácil de um trabalho logo no início. Parabéns a todos e Evoé!


O Melhor: O Trabalho em grupo e o espaço 

O Pior: Alguns equívocos na operação da sonoplastia


Direção: Romeu Waier


Elenco: 


Romeu Waier    

Nara Medeiros  

Rick Artemii       

Bruno Tolentino 

Fernanda Caroline 

Matheus Garcia 

Naty Mendes 


Dicas de Livros: Laban na Voz - Angélica Ertel

Construção do personagem- Constantin Stanislavski 


Citação:


"Eu amo os atores nas suas alucinantes variações de humor, nas suas crises de euforia ou depressão. Amo o ator no desespero de sua insegurança, quando ele, como viajor solitário, sem a bússola da fé ou da ideologia, é obrigado a vagar pelos labirintos de sua mente, procurando no seu mais secreto íntimo afinidades com as distorções de caráter que seu personagem tem. E amo muito mais o ator quando, depois de tantos martírios, surge no palco com segurança, emprestando seu corpo, sua voz, sua alma, sua sensibilidade para expor sem nenhuma reserva toda a fragilidade do ser humano reprimido, violentado. Eu amo o ator que se empresta inteiro para expor para a platéia os aleijões da alma humana, com a única finalidade de que seu público se compreenda, se fortaleça e caminhe no rumo de um mundo melhor, que tem que ser construído pela harmonia e pelo amor. Eu amo os atores que sabem que a única recompensa que podem ter – não é o dinheiro, não são os aplausos – é a esperança de poder rir todos os risos e chorar todos os prantos. Eu amo os atores que sabem que no palco cada palavra e cada gesto são efêmeros e que nada registra nem documenta sua grandeza. Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica. (1986)" - Plinio Marcos



36 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page